segunda-feira, 30 de março de 2009

Seu L.

Todos os dias, seu L. vai até o restaurante buscar uma marmita, que será seu almoço e também sua janta. Seu L. não cozinha, não tem fogão e nem geladeira. Poderia ligar e pedir para lhe entregarem o almoço –não cobrariam a mais por isso --, mas prefere ir até lá buscá-lo.


Com um andar lento, rijo e desajeitado de um tronco corpulento que mal se equilibra sobre duas pernas finas e tortas, faz seu trajeto vagarosamente, sofrendo de um cansaço que só sente quem já andou por mais de oitenta anos. O nariz de batata, os olhos de peixe morto, o rosto marcado pelas rugas, a barriga grande, as pernas finas e o andar desajeitado o tornam uma figura desagradável de se olhar.


Ninguém sabe ao certo sua idade, ele também não saberia, não fosse o jornal que recebe todos os dias na porta de sua casa e o mantém informado sobre em que dia está. Mantêm-no informado também de muitas outras coisas, que de nada servem a ele, mas mesmo assim lê com entusiasmo.


Lá, espera prepararem a refeição sem a menor pressa. Sem pedir licença, sem ser convidado, sem se importar se gostariam de ouvi-lo e sem ater-se ao fato de que não é agradável incomodar duas pessoas quando elas comem, dirige-se a dois garotos que almoçam e inicia uma de suas maçantes e desagradáveis conversas de sempre.

“O Palmeiras perdeu, né?, mas ele já estava classificado, né?” Seu L. é palmeirense, sabe todos os jogos e todos os resultados da rodada, pois escuta na rádio ao programa de esporte todos os dias. A frase fora repetida umas cinco ou seis vezes ao longo da conversa, a qual mais se assemelhava com um monólogo, os rapazes apenas concordavam com a cabeça, ou com um “aham”. Teriam mandado-lhe à merda se não fosse o respeito aos idosos. Enquanto isso ele reproduzia fielmente a análise do comentarista da Jovem Pan a cerca da falta que fizeram aos dois times, Palmeiras e São Paulo, Diego Souza e Borges, respectivamente.


O falar é estranho, diz as palavras muito rapidamente, atropela algumas, engasga em outras, repete uma ou outra por vezes, é um falar afoito, uma ânsia de dizer, um dizer mais rápido que um pensar, uma fala difícil de ser compreendida.

Os dois jovens não estavam nem um pouco interessados, assim como não estavam interessados nos assuntos seguintes. Seu L., tal qual como fizera com o discurso do comentarista, reproduzia exatamente o discurso do radialista apresentador do jornal matutino, conferindo os devidos créditos. “O seu Roque falou na rádio”. Falava sobre a falta de chuvas na região, sobre como no restante do estado chovera bem, mas na nossa região não e como isso prejudicou a agricultura.


Os garotos ficavam cada vez mais impacientes com a incômoda figura, porém seu L. não percebia. Os dois tiques nervosos, olhos que não paravam de piscar e uma língua sendo colocada pra fora da boca de tempos em tempos, aliados ao vício de linguagem, “né”, tornavam a cena ainda mais patética.


Lembro-me da última vez que vi seu L. Me incomodara com conversa sobre futebol, na época o time em questão era o Corinthians e o assunto era o rebaixamento, e sobre conflitos em alguma região do Amazonas que ouvira na rádio. Aposto que mal sabe achar o Amazonas no mapa, mas sabia mais sobre os acontecimentos do lugar que eu. “O moço da rádio disse”.Lembro também de chamar mais atenção os seus tiques do que o conteúdo da fala. Seu L. continuava o mesmo.


Escuta ao rádio, não tem TV. Acorda cedo, pois assim se acostumara desde a mocidade, lê o jornal, depois liga o aparelho, ali fica até a hora do almoço. Depois de almoçado, volta ao rádio até de tardezinha. Janta e novamente volta ao rádio após a refeição. Isso porque seu L. não tem parentes e nem amigos vivos, só um sobrinho, que gentilmente lhe cede a casa em que mora e uma ajuda financeira, mas não o visita.


Ele costuma repetir tudo que escuta no rádio ou lê no jornal, só faz isso o dia inteiro. O problema é que não percebe que as pessoas podem não estar tão interessadas quanto ele no Palmeiras, nas chuvas ou no Xingu, e ele pode estar incomodando-as.


Depois que cansou de azucrinar os dois rapazes foi incomodar uma senhora que também esperava servirem lhe a refeição. Falou novamente sobre a derrota do palmeiras, “O Palmeiras perdeu, né? Mas ele já estava classificado, né”, e falou também que o time jogaria em Itápolis, porém estava velho demais pra ir a um estádio. Disse depois que o seu Roque falou no matutino não estar esperando o principal elenco palmeirense, pois os jogadores seriam poupados para a Libertadores. Por fim, terminou falando sobre a comida do restaurante. Essa senhora mostrou-se menos apática, porém conversava mantendo o semblante de quem o fazia por obrigação, ou por pena. A mania de colocar a língua para fora a enojava, pois desviava o olhar do rosto do velho sempre que ela saía do lugar onde deveria ficar, dentro da boca.


Por fim, a marmita de seu L. ficou pronta e ele despediu-se de todos que responderam “tchau”, mas querendo dizer: “graças a Deus”.


Ele foi embora, com seu andar desajeitado e lento, levando consigo o almoço, o peso da idade e a solidão de quem só tem um rádio a lhe esperar em casa e mais ninguém, e nem mais oportunidade, para conversar.


Mas que porra! Será que ninguém percebeu que, com suas conversas chatas, sua inocente falta de educação e seu falar atrapalhado, ele só queria aquilo que nós também buscamos o tempo todo, todos os dias.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Ditadura do Ótimo

Ontem mesmo estava me olhando no espelho e achei-me magro. Aliás, reparando bem, tudo que tenho feito nos últimos dois anos é perder peso. Também, é compreensível, muito estudo e algumas baladas me deixaram sem tempo de sobra para treinar adequadamente. Sem falar que no último mês estive parado.
Com isso fiquei pensando que fosse tempo de reatar a velha forma. Daí me vieram algumas idéias que me incomodaram, vejam se acompanham e concordam.

Tinha um professor o qual usava uma expressão até meio recorrente -- já a ouvi em outros lugares--, “ditadura do ótimo”, querendo dizer que hoje não adianta ser bom, tem que ser ótimo. É uma expressão muito adequada.

É difícil apontar com precisão a causa disso, alguns dizem que a mídia impõe um padrão de beleza a ser seguido. Não é bem por aí, tais padrões sempre existiram na história da humanidade, mudam com o tempo, mas sempre existiram. A diferença é que hoje, o homem é mais pressionado a seguí-los do que antes. Não vou ficar analisando a sociedade atrás das causas e agravantes dessa “ditadura do ótimo”, pois não sou nenhum antropólogo e posso acabar dizendo besteira, quero usar exemplos mais subjetivos.


Sair na noite, principalmente lá em Ribeirão, era o mesmo que dizer ver uma galera excessivamente bonita, bem arrumada, gastando com bebidas, por vezes caras. Ou seja, não diz respeito só à beleza, tem que ser bonito, ter corpão, estar bem arrumado ser bem sucedido e ostentar. É como se a noite viesse pra você e dissesse: “Compre roupas caras! Se arrume! Vai Malhar! Vai ser alguém na vida!”. E querendo ou não, as pessoas se sentem impelidas a isso.
Se o problema fosse só esse tudo bem, mas no dia seguinte temos que ir à escola, no meu caso, o COC, e aquilo parece mais um desfile de moda (por isso que eu sou a favor de uniform
es, mesmo para salas de cursinho). Na TV só gente bonita. Numa entrevista de trabalho você tem que estar bem vestido, ter um excelente currículo. E é assim em todo lugar.

Tenho outro exemplo ainda mais subjetivo. Não sou nenhum Don Juan, mas até dá pra dizer que faço algum sucesso entre as garotas, mas quando eu era magrelo, cabeludo e cheio de espinhas na cara eram poucas as que me queriam. Mas que porra, é o mesmo Rodolfo!

Parei no último parágrafo e reli o que escrevi, tenho esse costume. Devo fazê-lo ainda mais uma vez antes de postar. Até agora me pareceu um discurso de um indivíduo oprimido pela sociedade opressora. Mas é aí que entra a pior parte do meu pensamento.
Não ligo pra roupa de marca, mas também não compro qualquer coisa só por ser barato. Preocupo-me em sempre estar vestindo uma boa beca. Além do mais gasto muito dinheiro com perfumes e com medicamentos para as espinhas. Na academia, tento sempre manter a saúde em primeiro lugar – tenho um pequeno problema cardíaco, nada de mais, mas preciso de exercícios aeróbicos –, entretanto não posso negar que a estética também é um objetivo. Também já não posso contar quantas meninas legais que eu dei fora por não serem bonitas o bastante, ou quantas garotas lindas que fiquei as quais eram muito mais bonitas com um sapato na boca, pra não dizer outra coisa. Quase sempre me arrependi.


Disse anteriormente pior parte, pois mesmo sabendo de tudo isso, compactuo com a tal ditadura. E o faço, porque lutar contra isso é inútil, e ignorar é besteira. Não dá pra achar que eu sozinho vou mudar a cabeça das pessoas no mundo todo. No máximo posso escrever sobre isso num blog qualquer para alguns poucos leitores. Tudo que eu poderia fazer é ignorar isso, largar todas essas bobagens, afinal, não devo nada para ninguém. Será?

Todos e tudo a sua volta sempre esperam e cobram algo de você, e um dia ou outro você também vai esperar ou cobr
ar algo de alguém ou alguma coisa a sua volta, não dá para ignorar isso, então, pensar daquela forma mais atrapalha do que ajuda. Aí podemos incluir a sociedade. Ela cobra o ótimo de você, e você precisa das pessoas que fazem parte dela de uma forma ou de outra. Em outras palavras, é preciso jogar o jogo dela. Se não preciso, ao menos conveniente.

“Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria, era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”

Legião Urbana


Mas uma coisa eu sei. Não sou, não serei e nem pretendo ser "mala". Aqui em Ibitinga, diz-se mala aquela pessoa que pensa ser superior as outras justamente pela sua ostentção e busca incessante pelo ótimo excessivas e valorizam essas características. A ditadura do ótimo explica a existência de pessoas assim, mas não as justifica.

Apesar de tudo, me satisfaz saber que conhecendo esse processo posso usufruir dele, sabendo defender-me. Sabendo até que ponto buscar uma aparência melhor é saudável ou necessário. Sabendo que o ser humano não é essa carcaça que se mostra, somos entranhas, vísceras, corações, almas, mentes. Que se pode encontrar muito mais atrás do espelho. Que mergulhando abaixo da superfície se pode encontrar muito mais. Ou muito menos. E posso portanto, procurar nas outras pessoas -- e em mim também -- o que elas são e não apenas o que parecem ser.
E isso é o que me fez compartilhar esse pensamento.

Segunda-feira volto pra academia.

PS: esse post foi alterado com o propósito de deixá-lo mais claro. Espero ter funcionado.